Os Guarani Kaiowás precisam de nossa atenção. Por isso sou Guarani Kaiowá, assim como Marina Silva que assina este excelente artigo, publicado no Jornal O Estado de São Paulo, no dia 28 de outubro de 2012.

 

Nas assembleias estudantis e de movimentos sociais, nos anos 1970, 80 e 90, havia um ritual de “chamada” dos nomes dos que não estavam mais vivos e todos respondiam “presente!” como se todos ali fossem aquele que não estava mais. Geralmente tinham sido assassinados, em ação ou em sessões de tortura. A vida que havia se dado pela causa de todos era resgatada na vida de cada um e, coletivamente, com aquele gesto mostrávamos que aquela pessoa continuava a viver em nós.

Lunae Parracho/Reuters
Índios guaranis-kaiowás invadem fazenda que estaria dentro de suas terras em Paranhos (MS)

Nessa semana, com a tecnologia que nos permite o século 21, esse ritual de resgate foi reeditado no Facebook. Centenas de pessoas adicionaram, como sobrenome, o “guarani-kaiowá”. E uma página chamada “Somos guarani-kaiowá” foi criada. Por sorte eles ainda estão vivos, por sorte a mensagem é sobre a continuidade dessa vida em nós que somos brasileiros. É uma afirmação, e não um resgate. Mas a necessidade da afirmação se deu por uma situação trágica. Uma tragédia superlativa porque crônica, já que vem de longe, muito longe no tempo, a luta dos guaranis-kaiowás pelas suas terras, pela sua cultura, pelo respeito a sua visão de mundo.

Estudo recém-lançado pelo Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis do Repórter Brasil indica o ano de 1882 como o início da expulsão dos guaranis-kaiowás de suas terras – quando o governo federal arrendou a região para a companhia Matte Laranjeiras cultivar erva-mate. A partir daí, começaram a ser desalojados, expulsos de suas terras sagradas, tangidos para não lugares como são as faixas de beira de estrada, onde muitos grupos estão, áreas da União onde não se pode ter nenhuma atividade produtiva.

Às crianças nossa “pátria mãe gentil” oferece a chance da desnutrição. Aos adultos alquebrados, dobrados pelo sofrimento, resta o alcoolismo. E aos jovens, na idade do sonho com o futuro, com a vida adulta de realizações, mostra-se o horizonte da escolha entre trabalhar em canaviais, em regime de semiescravidão, ou perambular mendigando nas ruas das cidades próximas. Muitos preferem o suicídio. A maioria dos 550 suicídios no período de 2000 a 2011, como registrado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, são de jovens entre 17 e 29 anos. Por fim, a toda a comunidade guarani-kaiowá se oferece o lugar de estorvo no caminho da expansão das culturas de cana e de soja, que valorizam as terras e elevam os ganhos de quem tem estoques de terras para sediar a expansão do negócio.

Só a partir de 1970, quase 90 anos depois, os guaranis-kaiowás começaram a reagir organizada e sistematicamente. E então foram abraçados por um labirinto torturante que nossa cultura reserva aos que buscam as instituições jurídicas para pleitear reconhecimento de seus direitos.

O trecho da carta divulgada na imprensa, na semana que passou, mostra que os guaranis-kaiowás chegaram à exaustão com a hipocrisia e querem que autoridades e fazendeiros contendores assumam que sabem das consequências do que lhes está acontecendo: “Pedimos ao governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui”.

Ainda é tempo de trilhar o rumo da justiça com esses brasileiros. A justiça não apenas dos tribunais, das sentenças judiciais, dos papéis assinados em gabinetes distantes da realidade em litígio. A justiça do reconhecimento. Do múltiplo reconhecimento nesse paradoxal estranhamento étnico em um país que tem como uma de suas raízes mais profundas a riqueza da diversidade cultural.

É preciso reconhecer que não apenas os guaranis-kaiowás, mas os índios em geral sofrem com um olhar estagnado de colonizador que habita nossas percepções ainda hoje. Em uma manifestação que fiz sobre o filme Xingu, de Cao Hamburguer, disse que nós temos o hábito de eliminar o que não conhecemos e não compreendemos. Seria mais generoso, mais “civilizado”, ser capaz de enxergar e respeitar outras visões de mundo, outras lógicas de pensamento, outras maneiras de viver, outras formas de ser e estar no mundo.

É preciso reconhecer que em nosso país, com os mesmos direitos, vivem 305 povos indígenas que falam 274 línguas, conforme dados do Censo 2010 do IBGE. Não precisamos ser monoglotas, não deveríamos ser etnocêntricos.

É preciso reconhecer que excluir de nossa nacionalidade essas etnias, bem como outros tantos povos tradicionais, é uma mutilação incompatível com a rica contribuição que essa singularidade de nossa nação pode dar à comunidade humana. É fincado em suas raízes que o Brasil pode pleitear, na comunidade das nações, o papel de liderança que lhe cabe no esforço da transição para um modelo de desenvolvimento justo, próspero, democrático e sustentável.

O ideal de Brasil e o nome de brasileiro só serão legítimos se todos, todos mesmo, respondermos à chamada.